Agosto de 2017 completa um ano da finalização do processo de impeachment que afastou a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT) pelo suposto cometimento de crime de responsabilidade consistente nas “pedaladas fiscais” e na edição de decretos de créditos suplementares. Atualmente, o caso está sob juízo no Supremo Tribunal Federal (STF), mas as chances de que algo seja revertido são mínimas, uma vez que o relator do caso é ninguém mais, ninguém menos que Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça do atual presidente Michel Temer.
Entretanto, o processo de impeachment, cujo julgamento de admissibilidade da denúncia foi conduzido na Câmara dos Deputados pelo parlamentar Eduardo Cunha (PMDB/RJ), atualmente preso pela Operação Lava-Jato, enquanto no Senado o relator do mérito do processo foi Antônio Anastasia (PSDB/MG), ainda desperta muito debate e controvérsia. Para rememorar o que aconteceu há um ano e dominou os noticiários por praticamente todo 2015 e 2016, o Justificando elenca algumas discussões que foram travadas no caso, mas que não foram suficientes para reverter a contestável, porém histórica condenação.
Como começou
Melhor começar pelo começo, como diria o poeta. Em contexto de perda de apoio parlamentar em razão da dividida eleição de 2014, oposição midiática dos grandes veículos de comunicação e de parte da população, bem como pela debandada da base governista de parlamentares aliados ao presidente da Câmara Eduardo Cunha, o pedido de impeachment começou a ser insuflado nos corredores da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Foi das mãos de Janaína Paschoal, Miguel Reale – ambos professores de Direito Penal na universidade – e de Hélio Bicudo, promotor de justiça aposentado, que foi feito o pedido de impeachment mais repercutido na mídia à época e que resultou na condenação por crime de responsabilidade.
No início, tal pedido estava na mesa de Cunha para deliberação pelo parlamentar, o qual usava de sua prerrogativa em admitir ou não o pleito como moeda de troca política com o Palácio do Planalto, esperando, assim, receber apoio do governo em suas empreitadas. Sobreveio, então, a votação no Conselho de Ética da Câmara do processo de cassação do parlamentar em razão de acusações de corrupção e lavagem de dinheiro. Contrariando suas expectativas, deputados governistas votaram pela abertura do processo e, ao ver seus interesses contrariados, Cunha deflagrou o processo de impeachment como retaliação, conforme noticiado na época e posteriormente admitido pelo atual presidente e então aliado de Cunha, Michel Temer.
Nesse sentido, uma das teses jurídicas sobre o caso afirma que o impeachment de Dilma Rousseff é nulo por vício de iniciativa, uma vez que a motivação do ato que desencadeou o processo foi torpe, consistente em vingança. Do ponto de vista político, o desencadear dos fatos revelou que não apenas Cunha instrumentalizou sua prerrogativa de iniciar o impeachment para motivos nada republicanos, como sua própria presidência na Câmara teve esse fim para o sistema político como um todo: pouco menos de dois meses após o término do afastamento de Dilma Rousseff, o deputado foi preso e condenado a 15 anos de prisão.
Crime de responsabilidade é crime no sentido jurídico do termo?
Para entender muitos debates sobre o processo de impeachment é preciso destrinchar algumas discussões antes. Talvez uma das principais seja a polêmica sobre o crime de responsabilidade enquanto um crime propriamente dito e, sendo assim, se é protegido por princípios do direito penal e processual penal ou se é algo sem regulação que não se comunica com princípios base que regem o poder do Estado em acusar e punir qualquer pessoa que seja. Isso porque muitas teorias levantadas no caso só fazem sentido se observadas pela lógica aplicada ao Direito Constitucional, Penal e Processual Penal.
Quanto a esse debate, apesar do desfecho, não há maiores polêmicas. Juristas de renome internacional defendem que crime de responsabilidade é crime e, portanto, devem ter a regulação própria da matéria, como afirmam, por exemplo, Juarez Tavares, Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): A restrição de direitos e os graves efeitos que podem provocar suas sanções, no seio do Estado Democrático de Direito, devem levar à exigência dos mesmos critérios e princípios limitativos, do Direito e do Processo Penal, para se caracterizar a responsabilidade do Chefe de Estado [1].
De outro lado, como lembrado por Paulo Iotti, Professor Doutor de Direito Constitucional, colunista do Justificando e autor do amicus curiae que discute o processo de impeachment no Supremo Tribunal Federal (leia na íntegra), a corte adota essa tese há décadas, conforme, inclusive, ministros que estão na ativa, como Gilmar Mendes – que defendeu a teoria enquanto Advogado Geral da União no governo FHC – e Cármen Lúcia. Evidentemente, os ministros se manifestaram dessa forma antes do processo de impeachment ser uma realidade.
No entanto, Iotti argumentou que, ainda que STF ignorasse seu entendimento solidificado há décadas e negasse se tratar de discussão sobre crime, no caso estaríamos diante de um processo administrativo com sanção, cuja natureza de princípios coincide em inúmeros pontos com os regidos pelo Direito Penal e Processo Penal.
Apesar de ser pacífico no meio jurídico, a condenação por crime de responsabilidade sobreveio pela tese que ignora a natureza penal do processo. “Em diversas passagens, a defesa pretende aplicar normas do regime jurídico penal ao caso. Daí porque, faz-se necessário, desde já, apresentar os substratos doutrinários e jurisprudenciais que afastam a pretensão de equiparar os crimes de responsabilidade – e por conseguinte o regime jurídico próprio – aos crimes regidos pelo Código Penal e Processual Penal (este, como sabido, deve ser aplicado apenas subsidiariamente, por força do art. 38 da citada Lei nº 1.079, de 1950)”, Senador Anastasia, relator do mérito do processo de impeachment, ao afirmar que crime de responsabilidade não seguia regras do Código Penal e Processo Penal, em oposição ao que diz a grande maioria dos juristas, bem como o próprio Supremo Tribunal Federal.
A acusação de pedalada fiscal foi a que mais tomou tempo dos debates e noticiários, embora muitas pessoas não dominem o que ela significa. Basicamente, trata-se da prática do governo em atrasar o repasse de dinheiro para bancos públicos a fim de acumular caixa e apresentar as contas públicas de uma forma mais positiva. No caso em questão, Dilma Rousseff foi acusada de atrasar o repasse de R$3,5 bilhões para o Banco do Brasil arcar com o programa de crédito agrícola Plano Safra. O banco custeou do próprio caixa e depois foi ressarcido pelo governo.
Do ponto de vista jurídico, a discussão posta em contraposição à acusação foi sobre se pedalada fiscal é uma mora contratual ou uma operação de crédito. Em outras palavras, mora contratual no caso seria o atraso no pagamento de uma dívida, enquanto operação de crédito seria como se fosse um empréstimo.
A acusação sustentou que o atrase no repasse seria o equivalente à operação de crédito. No entanto, como explica Paulo Iotti no raciocínio jurídico penal (lembrar do debate se o julgamento de crime de responsabilidade segue uma lógica aplicada a outros crimes), defender a condenação por equivalência seria o mesmo que defender por analogia, algo vedado por violar o princípio da taxatividade, isto é, a crime é aquilo que está literalmente posto na lei. Não pode ser “como se fosse” ou ainda partindo do raciocínio de “na prática, funcionou de outra forma”.
Seguindo o princípio da taxatividade, atraso no repasse para banco público jamais poderia ser considerado crime, uma vez que se trata de mora contratual, algo comum às mais variadas situações do dia-a-dia das pessoas. “Do contrário, imaginemos a situação esdrúxula de que sempre que você atrasar um boleto ou não pagar um aluguel você está fazendo uma operação de crédito. Isso é teratológico, pelo amor do Estado de Direito”, ironizou Iotti. Inclusive, essa posição de que as tais pedaladas fiscais são inadimplência contratual foi defendida pelo Ministério Público Federal.
Além da conduta poder ser considera crime, outro argumento rebate a tese de pedalada, que foi a falta de ato comissivo por parte de Dilma Rousseff. Em outras palavras, ainda que pedalada seja considerada uma operação de crédito, não ficou comprovada a participação de atos de Dilma no atraso do repasse ao Banco do Brasil, conforme apontou a perícia do próprio Senado Federal.
Créditos suplementares
A segunda acusação pela qual Dilma foi condenada por crime de responsabilidade versava sobre a edição de decretos orçamentários sem previsão na meta fiscal e autorização do congresso, algo que seria indispensável segundo o artigo 167 da Constituição Federal. Explicando de outra forma a acusação, seria como dizer que presidenta afastada autorizou o gasto de recursos para além do que foi permitido que Executivo gastasse.
Ocorre que no caso não há tanta polêmica jurídica no caso, pois a meta fiscal considerada pelo governo para edição desses decretos foi aprovada pelo Congresso no fim de 2015. Ou seja, o Legislativo referendou os decretos, autorizando-os posteriormente, o que torna contraditório que deputados e senadores criminalizem algo que eles próprios compactuaram.
De outro lado, no Direito Penal quando alguém comete um suposto crime e, logo seguida, uma lei é editada legalizando a conduta, há o abolitio criminis – o que era criminalizado deixou de ser, portanto qualquer eventual condenação perderia sua razão de ser. Nas salas de aula dos cursos de Direito, o exemplo dado é a pessoa que é presa por tráfico de maconha. Supondo que maconha seja legalizada, quem quer que tenha sido preso por isso tem que ser solto, bem como qualquer pessoa que seja acusada por essa prática, deve ser absolvida.
No processo, tal evidência foi documentalmente constatada pela perícia do Senado, bem como pelos juristas convidados como testemunhas do caso, como, por exemplo, o Professor de Direito Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ricardo Lodi.
Além disso, outro argumento é levantado por José Eduardo Cardozo, no sentido de que ainda que tenha sido posterior a autorização do parlamento, tal fato não significou no descumprimento da meta fiscal no período anterior: A meta fiscal, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 4º, é anual. Anual. Os relatórios são feitos para que se tomem medidas, a fim de que a meta seja assegurada. Os decretos foram baixados, presidente Lewandowski, presidente Renan, em julho e agosto. A meta teria que ser verificada no final do ano. É o que diz a lei. É textual. É clara. É indiscutível. No entanto, dizem ‘não, mas naquele momento estava se descumprindo a meta’. Como se descumpre uma meta, se ela é anual? Em julho e agosto? Teria que ser descumprida em dezembro”, argumentou o advogado na sessão no Senado Federal.
Nulidades no julgamento
» Quebra da imparcialidade: como explicou Geraldo Prado, “o fato de se tratar de um juízo político não significa que os julgadores possam decidir de forma antecipada independentemente de qualquer coisa, de forma parcial e partidária”. No depoimento de testemunhas que desmontavam as teses de acusação, cenas de plenários vazios se tornaram comuns. Os parlamentares não entraram no debate sobre os crimes que imputaram à presidenta afastada e políticos que hoje estão no alto escalão do Planalto vangloriavam-se de ter o resultado do julgamento antes mesmo dele acontecer.
» Correlação entre acusação e sentença: “Por Deus”, “pela minha família”, “pelos corretores de imóveis”, tudo valeu na condenação de Dilma Rousseff, menos a discussão sobre pedaladas e créditos suplementares. Como aponta Geraldo Prado, o princípio da correlação e sentença dita que a pessoa só pode ser condenada, bem como a instrução da prova somente pode ser feita nos limites da acusação. Entretanto, no caso, não houve uma relação sequer no julgamento pela Câmara e pelo Senado entre a decisão final e os motivos da acusação.
» Quesito único: Apesar de todas teses em jogo e acusações diferentes em um caso que envolve debate jurídico e político, para afastar uma presidenta da República parlamentares somente puderam votar “sim” ou “não” a uma única pergunta, prejudicando tanto o refinamento do resultado, como também o trabalho da defesa. Para entender melhor como deveria ter sido o processo, já que se tratava de um julgamento, o Professor Livre-Docente de Direito Processual Penal da UERJ Afrânio Silva Jardim preparou um modelo de como deveria ter sido:
Golpe
“Esse é um julgamento jurídico e político”, disseram inúmeros parlamentares ao darem ênfase à última qualidade do processo de impeachment, ignorando o próprio conteúdo de materialidade jurídica exigida pela própria Constituição. No caso em questão, o aspecto político estava mais do que implementado, ante a perda de maioria no Legislativo pelo governo federal.
Contudo, não foi possível mostrar o cumprimento do requisito básico de justa causa, ao ser procedida um impeachment sem crime de responsabilidade. Como afirmou Geraldo Prado, “se não há crime, não basta que todos os senadores queiram votar contra Dilma”, uma vez que nesse caso apenas um requisito estaria sendo cumprido, isto é, o aspecto político do julgamento.
Por isso, afirma Paulo Iotti: “a tese de golpe é uma tese jurídica, uma vez que houve a condenação por crime de responsabilidade sem que tivesse sido cometido um crime de responsabilidade”. Além de Iotti e Prado, citados na matéria, inúmeros juristas dividem esse sentimento.
Processo está nas mãos de Alexandre de Moraes
O processo que traz esses e outros questionamentos ao que ocorreu há um ano foi distribuído para o ministro cuja trajetória é ligada ao atual presidente Michel Temer, o qual o indicou para a corte. Caberá a Alexandre de Moraes, antigo ex-ministro da Justiça do governo provisório, pautar a ação para que o Supremo se posicione sobre o assunto. Vale lembrar que a corte se manteve silente durante todos esses acontecimentos, despertando enorme desconfiança no meio jurídico, que denunciou sua participação institucional no desfecho de um julgamento com contestáveis acusações sobre crime de responsabilidade.
A expectativa, portanto, é que o impeachment sem crime de responsabilidade seja chancelado pela corte que se tornou adepta do governo atual. Nas palavras do Professor Doutor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, Frederico de Almeida, “o STF não vai barrar o golpe porque ele é parte do golpe”.