Órfico ritual de iniciação

A peça “Quase infinito” (@quaseinfinito_espetaculo), apresentada no Teatro Faap, em São Paulo, SP, é um percurso pela existência. No jogo pela passagem do tempo que a peça propõe, é instaurado um universo que atinge o leitor com sutis e assertivas navalhadas em que o esquecimento e o apagamento de lembranças são personagens.

Os cinco atos, inspirados no universo de Jorge Luis Borges, tratam de ódio; do nada; do esquecimento associado com a morte; do esvaziamento de si; da incomunicabilidade; e da esperança. O conjunto garimpa a existência e constitui em jornada para a sobrevivência mental.

Há, por exemplo, uma ampla citação e locais geográficos, mas a percepção que se tem é que se está a vislumbrar um “eu” que vivencia um degredo de si mesmo em um universo pleno de cores, de paisagens e de conflitos em várias esferas, seja interiores, com a sociedade, com a natureza e com o universo.

Percorrer o livro é atravessar o mar de um ontem que se torna presente a todo instante. Sonhos de paz se mesclam com fraturas entre o vivido e o imaginado que estão além de momentos históricos, idade ou foco da narrativa proposta. Os atos funcionam assim como fotografias de instantes filosóficos e artísticos.

Os melhores momentos talvez sejam os que criam imagens mentais de silêncio. A peça, com direção de Elcio Nogueira Seixas e dramaturgia e atuação de João Paulo Lorenzon, ganha a dimensão órfica de um ritual de passagem sem felicidade, uma Páscoa existencial que leva a um voo fugaz para um sutil e misterioso destino incerto.

A obra é uma espécie de cômoda fechada sem chave. Isso permite que cada um o veja como um dissonante carrossel que serve como refúgio. Se há ruido, existe também silêncio, pois o resultado evoca um caminhar por uma rua sem luz em que não se sabe o que está à espera e à espreita.

A existência passa a ser vista como um universo de vertigem, um permanente recomeço regido pela imperfeição. Nesse processo de resgate do passado, talvez a luz esteja em perceber que, na vida, é ilusório pensar em iniciantes ou iniciados. Todes são integrantes de um tácito pacto que dá continuidade ao fluxo da história.

Oscar D’Ambrosio     @oscardambrosioinsta
Pós-Doutor e Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Mestre em Artes Visuais, jornalista, graduado em Letras, crítico de arte e curador.