O dia mal amanheceu na periferia da cidade e Isaldo Severino já está quase pronto para mais uma jornada. Da única porta semiaberta do barraco, empenada e castigada pela chuva e pelo sol, pode ver Pinduco, seu fiel escudeiro e vira latas de meia idade, despertando e espreguiçando-se despreocupadamente no quintal de chão batido.
Isa, como é conhecido, vestiu uma calça de jeans velha, camisa do Corinthians pra homenagear seu time do coração que, com a vitória na última rodada, alçou ao primeiro lugar na tabela do campeonato brasileiro, tomou uma caneca de café preto que acabou de passar em coador de pano e comeu um naco de pão amanhecido que costuma receber do dono da padaria do bairro.
Não se esqueceu de também, cuidar da saúde, tomando os 4 comprimidos diários que é obrigado a fazer uso: atenolol para regular a pressão arterial, cloridato de metiformina, para o diabetes, lozartana, para hipertensão e sinvastatina 40 mg, para triglicérides e colesterol, todos prescritos pelo médico do Posto de Saúde e fornecidos gratuitamente pelo Governo.
Agora tinha que dar um trato nas louças, na verdade, um prato, uma panela velha de alumínio de fundo preto, um canecão amassado, um copo americano e alguns poucos talheres, para depois dar um tapa no barraco, varrendo o piso e lavando algumas roupas surradas, nada mais do que duas camisas com as mangas esgarçadas e colarinho desbotado, uma calça com alguns remendos e duas cuecas pedindo descarte, todas as peças recebidas em doação.
Ultimamente a féria, como costuma denominar o dinheiro que recebe com a venda de latinhas de alumínio, não está lá essas coisas. O dinheiro recebido ultimamente não passa de R$30 por dia e, não fosse a generosidade do dono da padaria e do gerente do restaurante por quilo, não teria o que comer. – O mundo está cheio de pessoas boas, não é mesmo?, costuma dizer . – Isaldo vive sozinho em companhia de Pinduco. Foi casado quando morava em outra cidade e nem sabe ao certo como veio parar aqui.
Com a morte da esposa de nó na tripa (obstrução intestinal), como afirma, caiu na pinga e os filhos – dois homens barbados se mandaram sem nunca mais dar noticias -, cada um pro seu canto. – A cachaça me tirou anos de vida, mas me trouxe pra esta abençoada cidade e, é isso que importa. -, enfatiza. O relógio marca pouco mais de sete horas e o sol já brilha forte.
É hora de botar o boné azul marinho desbotado e surrado, calçar o par de tênis velho, pegar o saco plástico branco reforçado de 100 litros e sair pelo bairro e pelas ruas da cidade na busca de latinhas, cada vez mais raras, é bem verdade, pois a crise financeira pegou todo mundo, até mesmo os consumidores de cerveja e refrigerantes.
Precisa coletar no mínimo 75 latinhas para perfazer 1 quilo e garantir a féria de R$2,50. Ao final do dia deve ter caminhado mais de 10 quilômetros, sendo que destes, 4 correspondem à distância de ida e volta entre o seu barraco e o centro da cidade, onde está concentrado o maior número de latinhas recicláveis, mas também a maior concorrência.
Sem luva ou qualquer proteção, visita bares, restaurantes, lanchonetes e vasculha sacos e cestos de lixo, recolhendo latinhas que são amassadas e acondicionadas no saco, que aos poucos vai se encorpando. Isa tem alguns fornecedores cativos e é sempre bem recebido nesses estabelecimentos do centro. Muitos, além das latinhas que lhe são guardadas, nunca deixam de lhe oferecer um salgado ou um pedaço de pizza, que procura dividir com o Pinduco e que, não raras as vezes é pago por algum cliente ou pessoa generosa.
Depois de cumprir vasto roteiro e andança pelas ruas se dá conta de que já são quase sete horas da noite, as lojas estão todas fechadas e poucas são as pessoas caminhando pelo centro. Isa não conseguiu encher o saco de latinhas amassadas como desejava.
A crise realmente tá “braba”, pensa consigo mesmo. Pelos seus cálculos não chega a 10 quilos, mas é hora de retornar para a sua casa, não sem antes passar no Ferro Velho nas imediações do SESC para entregar a coleta do dia e receber os minguados trocados. Nesse dia a féria foi de apenas R$23,75, resultante de pouco mais de 700 latinhas coletadas, mas o suficiente pra comprar no mercadinho do bairro dois gomos de linguiça, 3 pães, uma caixinha de leite da promoção, meio quilo de carne de segunda para fazer um ensopado e também alimentar o Pinduco e, ainda, produtos de higiene e limpeza, sempre dos mais baratos.
Quando está começando o Jornal Nacional, cuja imagem surge um pouco distorcida na televisão de tubo 32” Semp Toshiba, Isa, deixa o corpo cansado e extenuado cair no sofá rasgado com espuma amarela à mostra, mas feliz, afinal, além do seu ganha pão sabe que está contribuindo para diminuir o desperdício e, principalmente, ajudando a natureza. Assim, como Isa, centenas de milhares de pessoas Brasil afora, informalmente sobrevivem do ofício de catador de latas, o que faz do país há 10 anos líder mundial na reciclagem de alumínio. De cada 100 latinhas, 98 são recolhidas e recicladas em nosso país. Em outros países a reciclagem decorre da consciência ecológica, aqui é para dar de comer à pessoas como o Isa.
Esse quadro é um retrato da pobreza e da falta de trabalho formal que leva pessoas a adotar essa atividade como profissão. Que bom seria se esse mesmo 98% fosse o nível de consciência das pessoas para com a comunidade em que vivem, respeitando regras básicas da vida em sociedade.
Por regras básicas, leia-se: não jogar papel, bituca de cigarros ou lixo na rua e preservar o meio ambiente; respeitar a faixa de pedestres dando preferência a estes, como em qualquer lugar civilizado; não tergiversar aos apelos de solidariedade e, às obrigações próprias de cada cidadão; não querer levar vantagens tirando proveito do próximo; não ser racista, xenófobo, sexista e homofóbico; não vender e não confiar o seu voto para candidato que não inspira confiança; ser generoso tanto quanto possível, e por aí vai.
Todos esses princípios o Isa os pratica e, na questão do meio ambiente, além de fazer a sua parte, sobrevive dele.