Médico e paciente indômito (baseado em fatos reais)

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Não faz muito tempo um médico viveu momentos preocupantes e desafiadores, tendo que trocar o tradicional jaleco branco com a identificação da especialidade na altura do ombro esquerdo, pela camisola azul de algodão, aberto na parte de trás, que é o uniforme de todo paciente quando internado. E, nessa condição de paciente, ele ficou por mais de dois meses no limiar entre a vida e a morte.

Esse singelo artigo pretende, ainda que de forma sumária, resgatar um pouco da experiência vivida por esse conceituado médico que acabou paciente em estado grave, no leito da UTI. Pretende também homenagear a luta incansável dos colegas intensivistas e mostrar que, enquanto há esperança há vida e que, é possível a vida ressurgir mesmo quando as condições clínicas são as mais adversas possíveis, ainda que restando apenas um fiapo de esperança.

Ao reproduzir a sua história é como fazê-lo assistir a um vídeo revivendo momentos de preocupações e inquietações, agora como protagonista e ao mesmo tempo expectador. Episódios como esse permitem demonstrar quão frágil e tênue é a vida e, é por isso que ela deve ser vivida com muita intensidade, não se devendo desperdiçar a oportunidade de curtir os momentos de rara felicidade. Mas vamos aos fatos.

Médico conceituado e muito respeitado, com pouco mais de 50 anos de idade e no auge da carreira profissional, só tinha três metas pela frente: formar dois filhos que ainda estavam na faculdade, reformar a clínica e continuar dedicando-se aos seus pacientes, realizando cirurgias de manhã e atendimento no consultório no período da tarde, além de cumprir um plantão semanal à noite. Se lhe dissessem que teria que abrir mão das cirurgias e do consultório, saindo em uma viagem de férias por apenas um mês, a resposta mais que peremptória seria não.

Contudo, mal sabia ele que as suas férias forçadas não seriam de apenas um mês, mas sete vezes esse tempo. Tudo começou após uma maratona intensa de cirurgias realizadas praticamente em regime de mutirão, que teve início numa quinta-feira e se estendeu até a sexta-feira, culminando com um plantão nessa noite. O excesso de trabalho, alimentando-se mal e dormindo menos do que o necessário, deixou-o vulnerável e suscetível a contrair uma infecção provocada por bactéria transmitida pelo próprio ambiente hospitalar.

Nessa mesma noite, ainda de plantão, começou a sentir-se febril. Levado ao raio-X, foi observada uma dúvida num dos pulmões que exigiu a prescrição de antibiótico pelo colega médico e chefe da UTI. Passou o fim de semana bem até que, na segunda-feira à tarde, quando atendia pacientes em seu consultório, voltou a sentir-se mal e foi para casa.

Como o quadro não se alterou, foi conduzido ao hospital onde veio a ser internado para exames. Novamente submetido ao exame de raio-X, a equipe que o atendeu observou que o quadro inspirava cuidados por conta da pneumonia dupla que havia evoluído para uma pericardite e uma insuficiência renal aguda. Levado à UTI, foi necessário realizar procedimento de traqueotomia, colocação de dreno num dos pulmões e submetido ao providencial coma induzido.

Esse estado perdurou 68 dias, sendo que desses, 60 dias em coma induzido. Seu peso que antes da patologia era de pouco mais de 70 quilos, ao voltar do coma contava com quase 110 quilos, atribuído ao inchaço provocado pelos medicamentos e insuficiência rela, apresentando ainda um quadro totalmente edemaciado e deformado.

Nesse período de coma, diferentemente de muitos outros relatos, não conheceu o túnel iluminado e nem sentiu-se em outro plano. Não sabe dizer ao certo se decorrente do efeito das drogas ou, até mesmo influência do mundo espiritual, mas recorda-se que participava de reuniões com 6 ou 8 pessoas, todos homens muito bem trajados de terno e gravata, sempre com um mesmo coordenador – um senhor baixinho de bigode que lembrava muito José Valien Royo, o “baixinho da Kaiser”(protagonista de inúmeros comerciais de TV dessa cerveja à época)-.

Em dado momento do coma, o amigo médico chefe da UTI, vendo a gravidade do quadro, chamou os filhos pra dizer que o pai deles não estava reagindo e que o caso era de extrema gravidade. Sua morte e até mesmo o seu velório foram anunciados algumas vezes por pessoas mal informadas.

O que parecia impossível, todavia, aos poucos começou a se reverter e, ao final de quase dois meses o coma induzido foi aos poucos sendo retirado. Ao recobrar a consciência, mal conseguia falar e apenas balbuciava algumas palavras, às vezes desconexas.

Pediu uma caneta e papel e tentava comunicar-se fazendo pedidos absurdos e estranhos, em letras quase inelegíveis, do tipo: comprar dólar, comprar lençol de cetim e tantos outros disparates. Depois de breve período de convalescimento no quarto, teve alta.

Chegando em casa teve a oportunidade de se ver diante do espelho e ficou perplexo ao ver como estava depauperado e esquelético. O período de recuperação fora do hospital exigiu mais cinco longos meses, com intensas sessões de fisioterapia para ganhar massa muscular e recuperar o organismo que estava extremamente debilitado. Ao final de mais de sete meses, desde aquela fatídica segunda-feira em que deu entrada no hospital, já totalmente recuperado, voltou a fazer o mesmo que fazia antes, porém em menor ritmo.

Hoje, transcorridos mais de dez anos, os três filhos, todos casados, já se encontram formados e trabalhando, a clínica foi reformada e desse episódio que tenta esquecer, embora se emociona ao lembrar, sobrou uma grande lição de vida resumida numa frase – “Há de se fazer uma reflexão sobre a vida que precisa ser mais valorizada e os momentos intensamente bem vividos.”

O ensinamento que se extrai de episódios como esse é que os médicos, em sua grande maioria, acabam se tornando também pacientes e vítimas quando, ao escolher a missão de curar doenças e salvar vidas, tornam-se reféns do próprio trabalho e não se cuidam como deveriam, deixando de viver saudavelmente a sua própria vida, para viver, muitas vezes, a vida ou o drama dos seus pacientes.

Como sabiamente disse Hipócrates, pai da medicina(460 a.C. – 370 a.C., Lárissa, Grécia) – “A cura está ligada ao tempo e às vezes também às circunstâncias.” – E mais, “Que teu alimento seja teu remédio, que teu remédio seja teu alimento.” – Finalmente, “A arte é longa, a vida é breve.”