Marquise como teto II

 

O sol começou a despontar no horizonte pelos lados do bairro São Francisco. A fria madrugada com temperatura abaixo dos doze graus sinaliza que o inverno neste ano será mais rigoroso que a dos anos anteriores. O Café da Esquina, que existe no mesmo local há mais de meio século, há pouco abriu suas portas permitindo que as pessoas, muitos clientes tradicionais, fossem atraídos pelo aroma inconfundível e inebriante do primeiro café fumegante coado no coador de pano, como é tradição. Muitos outros se sucederão até o final do dia e, quanto mais frio, mais pessoas saboreiam a bebida de maior consumo em nosso país. O aroma delicioso da rubiácea que, ainda é um dos principais itens de exportação do país, não alcançou a marquise da pérgola da praça da República, mas o raiar do dia e o próprio frio fizeram Sapoti despertar.

Sapoti, esse foi o apelido que ganhou quando criança por ser muito esperto e alegre. Pessoas apressadas e encolhidas pelo frio e, muitas protegendo o rosto com cachecol ou xale, atravessam apressadas e em diagonal a principal praça da cidade com destino ao trabalho. É hora de levantar antes que os homens da guarda municipal apareçam com a mesma ordem de sempre – hora de circular –. O duplo papelão e o cobertor surrado precisam ser dobrados e guardados na mochila esgarçada e maltratada. Apesar da dificuldade e da dor na perna direita, sequela de um atropelamento em que o motorista fugiu, uma pequena caminhada é necessária até o banheiro no subsolo da pérgola. Agora aliviado, caminha em direção ao café na esperança de que, uma boa alma lhe ofereça uma xícara que, sempre antecede à dose da branquinha destilada que, acalma o tremor das mãos, aquieta o fígado e rebate o frio(tremor alcoólico é um envenenamento agudo causado pelo álcool. É uma espécie de tremor fisiológico.

Só aparece de manhã com uma “ressaca”, e depois de beber até uma pequena dose da bebida alcoólica reduz-se ou desaparece). É preciso também conseguir uns trocados para comprar um salgado e cachaça, uma garrafa é suficiente para rebater o frio no dia todo. Seu olhar de desolação, próprio de quem aparenta muito mais do que os quase sessenta anos, barba por fazer e maltrapilho revelam um ser humano em estado de degradação e na descendente da ladeira. Agora sentado na calçada, aguarda que as boas almas dele se compadeçam e lhe ofereçam alguma moeda, um pedaço de pão ou, quem sabe, até mesmo um agasalho. O frio parece aumentar e o corpo pede mais cachaça que, ao mesmo tempo em que aquece, amolece os miolos e destrói a dignidade. Poucas são as moedas amealhadas, mas é hora de buscar abrigo, pois começa a chover.

A pérgola ou a entrada do Clube dos 300 são as opções mais próximas. As horas se passam e mal se deu conta que já passa do horário do almoço. Uma senhorinha simples se compadece e lhe oferece um dinheiro para um lanche com a recomendação que não é pra comprar pinga. Um novo gole de cachaça é ingerido às escondidas e começa a recordar dos tempos em que era autodidata em piano e garçom, a profissão que o levou à dependência do alcoolismo após ser demitido e abandonado pela família. Filhos são dois, ambos casados e não sabe quantos são os netos, pois perdeu o contato há mais de duas décadas, quando deixou a região extremo oeste do estado para adotar a cidade que somente a conhecida pela fama do melhor carnaval do interior. Aqui tentou seguir a mesma profissão e depois auxiliar de pintor, mas foi vencido pelo vício que o acompanha até hoje, dizimando suas energias, consumindo o que resta do seu corpo, causando torpor e destruindo a sua capacidade de ser racional.

Um jornal é esquecido sobre um banco próximo. A vista não ajuda, mas a ociosidade e a chuva que, não para o faz ler uma história com final feliz de um sem teto que, auxiliado por religiosos, conseguiu superar o vicio e tornou-se o rei da sucata. Fascinado pela primeira vez em mais de duas décadas, espera que a mesma sorte também lhe sorria e, antes de tomar mais um trago pensa consigo mesmo – será que valerá a pena?

Um outro amigo de rua chega todo encharcado para se proteger da chuva e aí passam a dividir a garrafa de cachaça. Adormecem e quando acordam já é noite. Mal se dão conta de que alguém deixou cobertores, agasalhos e sopa quentinha em embalagem de isopor. Agora a cidade está silenciosa envolta pela chuva e pelo frio que enclausuram as pessoas e faz adormecer os moradores de rua. Amanhã é um novo dia e logo nas primeiras horas o aroma gostoso do café do Bar da Esquina vai suscitar o desejo dos fregueses de sempre.

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