Discurso de um professora paraninfa da UFRJ

O texto abaixo foi extraído de um vídeo recebido pela internet. Ele retrata o discurso, feito com muita emoção, por uma professora escolhida paraninfa da turma de formandos em Letras do ano de 2017, da Universidade do Rio de Janeiro-URFJ. Seu nome não foi possível identificar, mas suas palavras sábias e verdadeiras são uma magnifica e exemplar aula de lição de vida.  Vale a pena conferir!

“Quero dizer que estou muito feliz por estar aqui e que,  talvez por isso, passei a semana a pensar no que aqui diria hoje e não me lembrei de outra coisa que não fosse o meu pai. De saída quero que fique claro que,  apesar de ser eternamente apaixonada por ele, não sou capaz de santificar nem os mortos, e meu pai foi um homem inesquecível porque era mesmo um poço de defeitos, entretanto,  deixou em mim marcas profundas para o bem e para o mal e hoje penso que,  muito do que sou não haveria se não tivesse de resistir a presença dele. Meu pai só tinha a terceira série primária e nasceu numa ilha perdida no meio do oceano atlântico, entre a América do Norte e a Europa, a ilha se chama São Miguel e faz parte do arquipélago dos Açores, o que transformou o nascimento dele um português.

Meu pai veio com sua família para o Brasil, fugido de uma ditadura pelo alistamento militar.  Ele seria mandado para uma guerra distante na África, e meu avô sabia que,  nas guerras, o pobre não importa que cor tenha e que sexo pratica, sempre vai morrer!  Mas meu pai nunca quis deixar a ilha e no Brasil passou a vida a procurar uma felicidade que ficou muito longe.

Meu pai tinha a terceira série primária e falava esquisito, o sotaque açoriano é mesmo muito esquisito e,  hoje sou capaz de imaginar o quanto lhe doía cada vez que queria dizer alguma coisa e não conseguia se fazer entender.  No entanto, uma cena de que não me esqueço.  Ele,  mais de uma vez tinha perdido tudo num pequeno negócio e tentando desesperadamente recuperar o pouco de moveis e utensílios que havia sobrado da falência,  era preciso negociar isso, convencer alguém,  enfim discutir.

Lembro que disse pela manhã à minha mãe já enfurecida  – “a pequena vai comigo” -, confesso que não entendi porque mamãe não queria que eu fosse, e ainda hoje me espanta a alegria que,  durante toda a minha infância senti por estar sempre ao lado dele, mas,  o que interessa dizer é que a cena que se passou foi uma entre tantas em nossas vidas. Lembro-me de estar diante de um guichê a falar com uma mulher, o que meu pai dizia a mim e,  na sequência de ouvir muitos nãos, eu  dizia a ela  – “a senhora não pode fazer isso, porque não é justo, ele só não estudou, ele não sabe dizer do jeito que a senhora quer que ele diga, mas ele é um homem honesto”.  Não sei até hoje o que moveu a tal mulher,  se o absurdo de uma menina de oito anos no colo de um gigante que falava esquisito ou,  como meu pai sentenciou depois – “estas a ver? É por isto que tu tens que continuar a ler aqueles livros. É por conta dos livros que tu sabes falar direito, falas como doutora, e nunca ninguém há de te passar para trás.”

Hoje,  eu sou doutora e,  se me passaram para trás foi porque assim eu permiti.  Meus alunos saem daqui aptos a enfrentar todos os guichês, a evitar todas as falências e a impedir todas as formas de humilhação. Se resta  dúvida a alguém para que serve um curso de letras neste país, um país cujo poder se especializou na distorção de um discurso, na manipulação da palavra e na ofuscação da verdade, explico didaticamente que serve para salvar da ignorância, para dar cidadania, para ensinar como se diz ao estelionato constituído – “eu não sou idiota, sei o que você quer dizer e não sou manipulável” –.  Mas,  como se isso não bastasse,  ainda somos capazes também de formar professores que,  teimosamente tentam manter em pé um sistema educacional que  não interessa,  porque faz pensar.

Não tenho partido politico, não tenho religião e os heróis pra mim e que existem estão nos livros, recomendo a quem goste deles que os procure na literatura. Os da vida real,  carecem de velhas semelhanças e de autocríticas.  É neste lugar, portanto,  que peço a todos que cuidem do país que estamos deixando para estes jovens que,  saem hoje daqui e que merecem um futuro. Mas,  se não é possível mudar Brasília em curto prazo, a Brasília que fomos nós que construímos, talvez seja possível mudar o seu quintal com o lixo acumulado. Tratar melhor a quem você atende em seu trabalho;  ceder lugar no ônibus;  diminuir o volume de seu rádio em sua casa;  dizer “bom dia”;  não desejar a morte do outro como solução, enfim, parecer um ser humano porque creio firmemente que,  nem eu e meus alunos somos herdeiros condenados a esta barbárie como destino.

Duvide por favor, das coisas fora de lugar, se uma frigideira estiver no seu banheiro sobre o vaso sanitário, isto está fora do lugar. Então, um líder religioso no congresso; um militar na politica;  um politico transvertido de super-herói;  um policial como juiz executor;  um juiz como majestade soberana,  são frigideiras que devem urgentemente voltar para a cozinha,  com o risco de você,  em breve,  não reconhecer mais o lugar onde mora.

Estou aqui neste lugar de homenagem há exatos trinta anos depois da minha formatura. Sou da turma que se formou em 1987, devo tudo ao meu esforço, trabalhei muito pra fazer por merecer  esta universidade,  o que significa dizer, que só a humanidade e seus livros são capazes de mudar o mundo, porque mudaram o meu.

Às  vésperas de minha aposentadoria gostaria de agradecer a lembrança de meu nome a esta homenagem, vocês não sabem como esse carinho me faz bem, mas,  gostaria de agradecer em especial aos meus alunos,  que não votaram em mim. Pelo menos aqui dentro ainda vivemos em democracia e,  para estar aqui hoje,  eu e meus colegas fomos escolhidos por votação. Obviamente,  há uns que não votaram em mim e para eles que vai o meu especial obrigado,  porque,  com eles fica a certeza de que a UFRJ,  entre trancos e barrancos,  também ensinou que democracia é assim mesmo –  às vezes se perde, às vezes se ganha -, mas nunca, absolutamente nunca, a ignorância violenta há de ganhar. Os caminhos são muitos e as pessoas variadas e que,  por isso é preciso ter antes de tudo tolerância e compaixão.”

Lindo não é mesmo?

 

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