O menino Anthony tinha três anos quando foi diagnosticado com Mucopolissacaridose (MPS) II, também conhecida como Síndrome de Hunter, considerada uma doença ultra rara (no Brasil, cerca de 500 casos foram diagnosticados entre os anos 1982 e 2019, segundo recente publicação de um grupo de pesquisadores do sul do País.
Doença genética que faz parte do grupo dos erros inatos do metabolismo, a MPS Tipo II pode provocar limitações articulares, perda auditiva, problemas respiratórios e cardíacos, aumento do fígado e do baço, além de déficit no desenvolvimento neurológico nas suas formas graves. Apesar de ter um tratamento no Brasil para essa doença, essa medicação não previne os problemas neurológicos associados aos casos graves da doença, como o de Anthony.
Obstinados em encontrar um tratamento eficaz para seu filho, os pais Antoine Daher e Fernanda Dauerbach descobriram, por meio da internet, que a farmacêutica japonesa JCR trabalhava no desenvolvimento de uma tecnologia com potencial chance de ajudar seu filho.Era uma luta contra o tempo, já que a doença avançava rapidamente sobre o sistema nervoso da criança.
“O medicamento que havia disponível no Brasil era eficiente apenas para tratar os efeitos físicos provocados pela doença, o que trazia melhora para o desenvolvimento do meu filho, mas, ao mesmo tempo, não conseguia controlar a piora no quadro em relação ao sistema neurológico”, lembra Antoine Daher, pai de Anthony e presidente da Casa Hunter, fundada por ele para ajudar famílias que enfrentam doenças raras.
“Sempre fui em busca de novidades terapêuticas no mundo inteiro, aí descobri a JCR, que tem uma enzima que penetra a barreira hematoencefálica e neutraliza os efeitos da doença no cérebro, algo que os outros medicamentos não conseguiam”, conta Daher, que foi convidado pela empresa a conhecer as instalações no Japão.
O pai de Anthony atravessou o oceano acompanhado do médico geneticista do Hospital das Clínicas de Porto Alegre e Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Roberto Giugliani, reconhecido como um dos maiores especialistas em doenças raras no Brasil.
Durante a visita, ao descobrir que os testes do novo medicamento seriam feitos apenas nos Estados Unidos e no Japão, Daher iniciou um trabalho de convencimento para que o laboratório incluísse o Brasil na pesquisa.
“Caso não conseguisse convencê-los, sabia que a vida de muitos, que têm a esperança de viver mais e com melhor qualidade de vida no Brasil, seria prejudicada, incluindo meu filho. Tentei resumir minha batalha de anos pelo meu filho, a luta com a Casa Hunter por políticas públicas de tratamentos de doenças raras. Por fim, consegui convencer os executivos a incluir nosso país na pesquisa”.
No mesmo encontro, estudos apresentados por Giugliani também ajudaram a mostrar como o estudo das MPS está avançado no Brasil e fizeram com que a JCR mudasse todo o planejamento da pesquisa para trazer os testes para o nosso país. “O Brasil tem potencial para pesquisas tendo em vista o número de pacientes e a necessidade de se ter um tratamento que atinja o sistema nervoso central”, explica Dr. Roberto Giugliani.
Testes no Brasil
De volta ao Brasil, Antoine ajudou a identificar 19 pacientes, além do filho, que poderiam participar da pesquisa clínica no Brasil. A pesquisa iniciou em setembro de 2018 (fase II) e segue com o estudo de extensão, além do novo estudo (fase III) que iniciará em breve. Anthony está fazendo tratamento no IGEIM/UNIFESP sob a coordenação da Dra. Ana Maria Martins, geneticista, professora da Unifesp e membro da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM).
“O comportamento do meu filho ao longo dos últimos três anos mudou completamente. Ele começou a entender quando explicamos algo, a dormir melhor e passou a se sentar conosco à mesa para as refeições. Isso antes da medicação era impossível, porque ele não ficava quieto em nenhum lugar”, lembra o pai. “Além disso, os exames laboratoriais comprovaram a redução no acúmulo que havia no sistema nervoso central provocado pela falta da enzima”.
A CEO da JCR Farmacêutica no Brasil, Vanessa Tubel, lembra que, em um primeiro momento, a pesquisa não seria realizada no Brasil, e sim no Japão e Estados Unidos, o primeiro destino internacional naturalmente escolhido por indústrias farmacêuticas. Porém, na reunião com Antoine, os executivos japoneses se comoveram com a sua luta e decidiram desviar a rota que passava pelos EUA e trazer a pesquisa sobre MPS II para o Brasil.
“O propósito da JCR é melhorar a vida dos pacientes aplicando nosso conhecimento científico e tecnologias exclusivas para pesquisar, desenvolver e fornecer terapias de última geração. A determinação do Antonie Daher em busca de um tratamento para o filho motivou toda diretoria da JCR no Japão, que tomou a decisão de vir para o Brasil para mudar a vida não só do pequeno Anthony, mas de outras crianças com doenças raras”, explica Vanessa Tubel.
O difícil diagnóstico
Foram mudanças no comportamento e atrasos no desenvolvimento e aprendizagem que fizeram Antoine e a esposa desconfiarem que havia algo de errado com a saúde do filho. Ele conta que a voz de Anthony começou a ficar mais grossa e muitos pelos começaram a nascer pelo corpo, ainda muito pequeno. O ano era 2012 e alí começava uma jornada para descobrir a doença.
“Durante um ano, todos os médicos que procurei me disseram que a causa era a falta de interação social”, lembra. Insatisfeito com a resposta, ele gastou mais de R$10 mil em exames, feitos em vários hospitais e laboratórios Até sair o diagnóstico, foram noites mal dormidas, dias no hospital e centenas de exames até chegar ao nome difícil da doença.
Não existia, até então, nenhum centro brasileiro especializado na Síndrome de Hunter, e muito menos medicamentos para tratar os pacientes. Daher conta que precisou entrar na Justiça para garantir o tratamento do filho no Hospital das Clínicas e a compra do remédio nos Estados Unidos. “Venci a ação e, seis meses depois, o Anthony já apresentava uma melhora surpreendente”, afirma.
Assim como nas demais doenças raras, as MPS são de difícil diagnóstico, uma vez que há múltiplos sintomas e muitos são comuns a outras patologias. O diagnóstico correto e precoce das MPS é fundamental para propiciar uma melhor qualidade de vida aos pacientes.
Com o Teste do Pezinho ampliado, permitindo o diagnóstico precoce, associado ao tratamento com o medicamento ainda em teste, Antoine acredita que será possível, no futuro, o tratamento precoce dos pacientes, assim prevenindo os quadros mais graves da doença
Casa Hunter
Depois de ter passado por toda essa jornada para obter o diagnóstico e o tratamento, Daher decidiu fundar, em 2013, a Casa Hunter, junto com outros pais de crianças com a síndrome e médicos focados em estudos genéticos. Hoje, ele é presidente da entidade e dedica sua vida a ajudar brasileiros com doenças raras.
O espaço oferece atendimento gratuito multidisciplinar (dentista, psicólogo e fisioterapeuta) para até 300 pessoas por mês, desde bebês até adultos com 50 anos. “Lutamos por visibilidade e equidade, a garantia dos direitos de todo Brasileiro. Acesso a diagnóstico e tratamento, conquistas básicas, mas complexas quando falamos de doenças raras” complementa Antoine.
O presidente da entidade tem forte atuação com diversas autoridades e órgãos governamentais para o desenvolvimento de novas políticas públicas que visem melhorar todo este cenário das doenças raras no país, uma atividade que, segundo ele, é essencial para conseguir avanços no tratamento de doenças raras. Há um ano, Antoine Daher também passou a presidir a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), instituição com 57 federados espalhados em todos os estados do país.
Fonte: Agência Fato Relevante